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  OS SETE PODERES DE TRANSFORMAÇÃO EM BIODANZA 

                                   Autor - Antonio Sarpe  - Diretor da escola de Biodanza de Portugal

INTRODUÇÃO
                                                                                                                     

“O que aconteceria se, em vez de apenas 

construir nossa vida, nós nos entregássemos

à loucura e à sabedoria de dançá-la?”

                                                                Roger Garaudy

 

A interrogação feita acima pelo pensador francês se desdobrará ao longo deste artigo gerando novas questões, não só relacionadas à dança, mas sobretudo à Biodanza, método criado pelo antropólogo chileno Rolando Mário Toro Araneda. Afinal, que efeitos produzem a Biodanza nas pessoas que a praticam? Como é possível mediante a dança e exercícios em grupo gerar benefícios nos níveis orgânico, social e mudanças no estilo de vida dos participantes? Será a Biodanza um método capaz de contribuir para um mundo mais solidário e humanitário? Que recursos dispõem a Biodanza para atingir seus objetivos?

Estas perguntas serão o meu leitmotiv [1] para construir o artigo e para propor a Biodanza como uma prática capaz de atuar positivamente diante dos desafios e complexidades do estilo de vida do mundo contemporâneo.

Sendo esta abordagem geradora de efeitos terapêuticos e pedagógicos, pretende não só recuperar níveis elevados de saúde como atuar de forma profilática [2], possibilitando aos seus participantes uma reeducação para um cotidiano que respeite as necessidades vitais básicas [3]. Para isto é necessário que se tenha uma visão integrada [4], não dissociando o que é psicológico do que é corporal. Concordo com Groddeck (1994) quando afirma que não se devem tratar as doenças, mas a pessoa e que não há diferença entre doenças do espírito e do corpo, soma [5] e psique são, em essência, a mesma coisa. Este autor chamou de ‘isso’ a algo desconhecido, do qual, tanto a saúde, como a doença são manifestações.

 A Biodanza amplia esta noção e se autodefine como uma terapia para “enfermos da civilização” (Toro, 1991, p.135), isto quer dizer que o estilo com o qual se vive, pode ser patológico ou gerador de saúde e os tratamentos perdem sua eficácia se não se modifica o cotidiano. Como destaca Lewis (1993), as pessoas portadoras de certos traços de caráter têm maior probabilidade de contrair determinadas doenças. Para poder atuar não só no indivíduo, mas no estilo de vida, as bases conceituais da Biodanza se apóiam na biologia, antropologia, fisiologia, psicologia, sociologia e mitologia, englobando ao máximo as manifestações humanas. E para dar coerência sistêmica [6] a este arcabouço teórico, Toro (2002) norteia o caminho criando o Princípio Biocêntrico, no qual faz referência imediata à vida, e se inspira nas leis que conservam os sistemas vivos e permitem sua evolução. Este princípio propõe que o universo é teleonomicamente [7] orientado para a vida, da qual somos uma manifestação. Este autor encontra ressonância em De Duve (1997), que afirma ser a vida um imperativo cósmico, e Bohm (1998), quando critica a limitação da percepção fragmentada do universo e amplia a visão para a totalidade. O Princípio Biocêntrico garante à Biodanza coerência para só incorporar elementos ao seu método que estejam de acordo com sua intenção de favorecer a integração.

Para falar da aplicação prática do que descrevi vou utilizar como guia Os Sete Poderes de Transformação de Biodanza: o poder da música, o poder do movimento integrado (dança), o poder da vivência, o poder do grupo, o poder da carícia, o poder do transe e da regressão e o poder da expansão da consciência. Estes possibilitam extrema eficácia à abordagem em Biodanza, pois integrados num método congruente ganham uma dimensão transformadora incomum.

 

O PODER DA MÚSICA
 
 “Então elevou-se uma árvore! Pura elevação!

 Orfeu está cantando! Uma grande árvore no ouvido!

 E Tudo silenciou! Mas mesmo no silêncio unânime,

 Nasceu novo princípio, gesto e transformação”

                                                                                              Rainer Maria Rilke      

 

A música encontra seu antecedente mítico em Orfeu [8], acima celebrado nos versos do poeta alemão. Para Brandão (1996) a maestria de Orfeu com sua cítara e a suavidade de sua voz arrastava por encantamento animais selvagens, seres da natureza, fazendo com que as árvores se inclinassem para ouvi-lo, transformando espíritos coléricos em almas plenas de ternura e bondade. Na antiguidade o filósofo Pitágoras de Samos, como descrito em Kirk et al (1994), exaltava a harmonia dando-lhe uma dimensão cósmica e relacionando-a com o princípio ordenador de todas as coisas. Bornheim (1993) comenta que para o pensador e matemático esta harmonia é engendrada nos astros como sons produzidos sinfonicamente, gerando assim a música das esferas. Acho importante perceber que desde o início da estruturação do pensamento humano, e de acordo com Durand (1997), os mitos são idéias em estado nascente e o imaginário corresponde à infância do pensamento, a música foi considerada como dotada de um poder excepcional capaz de gerar estados não passíveis de serem alcançados através de outros métodos. Para o filósofo Nietzsche (s.d.) a vida sem a música se transforma numa tarefa cansativa, num exílio, simplesmente um erro.

Saltando para a atualidade, Benenzon (1985),  fundador do curso de Musicoterapia, ensina que a música não nos chega por uma via cortical [9]. É no tálamo – região do cérebro onde se recebem os sinais sensoriais correspondentes às sensações e emoções – que somos tocados por ela num plano não-consciente; isto é, mediante um ritmo musical podemos condicionar uma resposta inconsciente automática.

Toro (2002), assinala a capacidade da música de promover a regulação do sistema nervoso autônomo através de músicas ativadoras com ritmos euforizantes, resultando numa ativação simpático-adrenérgica, que gera o aumento da pressão arterial, do batimento cardíaco, da vaso-constrição, do deslocamento do sangue para os músculos que vão entrar em ação, da broncodilatação para permitir uma ventilação maior – todas essas são reações de emergência. Já as músicas suaves, com movimentos em câmara lenta, geram diminuição do ritmo cardíaco, aumento da secreção das glândulas lacrimais e salivares, fomento da acumulação de reservas, predisposição ao sono e ao repouso – todas essas sensações de plenitude e paz. O autor também indica um caminho para a evolução de uma semântica musical [10], onde os elementos orgânicos da musica, denominada biomúsica [11] - tais como: fluidez [12], harmonia, ritmo, tônus, unidade de sentido [13] - sejam preservados. Agregando elementos que resgatam na música um potente instrumento deflagrador de vivências [14], emoções e sentimentos. “Nas primeiras batidas de uma música está, em certo sentido, o embrião de sua totalidade (...) um esquema de resposta afetivo-motor-expressivo, que determinará os movimentos sucessivos da dança; da coerência entre música e dança surge a vivência”.(Toro 2002, p.130).

Todas as idéias e reflexões até então elaboradas me permitem destacar o poder de transformação da música em alguns de seus efeitos. A música em Biodanza já contém a dança que será gerada no participante que por ela for tocado. Como também, a potencialidade de gerar gestos integradores motivados pelas sensações, emoções, sentimentos e vivências.

 

O PODER DO MOVIMENTO INTEGRADOR

                                          

                                                           “A dança gera o destino

                                                           Sob as mesmas leis que vinculam a flor e a brisa

                                                           Sob o girassol de harmonia

                                                           Todos somos um”.

Rolando Toro
 

Ao longo de sua história, a dança foi perdendo seu sentido originário. Deixou de ser uma manifestação profundamente conectada com as raízes constitutivas do homem diante do seu mundo e transformou-se num objeto de apreciação estética na forma de um espetáculo, onde dançarino e público estão separados. Concordo com Garaudy (1980) quando afirma que a dança se tornou uma língua morta “depois de quatro séculos de balé clássico e vinte séculos de desprezo ao corpo por um cristianismo pervertido pelo dualismo platônico” (p. 13). Estas dissociações têm ocorrido ao longo do processo de afastamento da dança de sua origem, fazendo com que o movimento deixe de ter sua orientação gerada a partir da vivência [15], passando a ser orientado pelo aprendizado por vezes mecânico e repetitivo de gestos estereotipados com fins coreográficos. O mesmo autor comenta que em sua forma originária a dança está vinculada aos ritos de fertilidade, à reverência aos deuses, à   celebração, à magia , à religião, ao trabalho, à festas e à reiteração de laços sociais. Acrescentando, ainda, que a dança moderna, sobretudo com Isadora Duncan, retoma a dança “... não apenas como uma arte, mas como um modo de viver” (Garaudy, 1980, p. 13). A Biodanza parte deste princípio para propor a dança da vida.

Dentro da metodologia Biodanza, o sentido originário da dança em sua acepção de ‘movimento pleno de sentido’ é recuperado e a dança reativa sua dimensão arquetípica [16], profundamente conectada com as matrizes de gestos eternos acumulados desde a gênese da cultura humana. Ainda que não se dê conta se está dançando a vida. Como comenta Toro (1991):Mais que um espetáculo, a dança é o movimento interior que origina os atos vitais: o abraço, o acalanto do bebê, as carícias e o beijo, o trabalho, os gestos abatidos de solidão e os gestos do encontro. (p. 491)

 

O PODER DO MÉTODO VIVENCIAL
 

“Vemos as coisas mesmas,

o mundo é aquilo que vemos,

se perguntarmos o que é

este nós, o que é este ver e

o que é esta coisa ou este mundo,

penetramos num labirinto

de dificuldades e contradições”

                                                                                                          M. Merleau-Ponty

 

            A história da cultura ocidental tem se caracterizado por um afastamento gradual e intenso do mundo vivido [17], que na linha do pensamento de Merleau-Ponty (1990, p. 42) constitui: “... o fundo sempre pressuposto de toda racionalidade, todo valor e toda existência”. Antes do racionalismo platônico [18] ser dominante, seus antecessores, os pensadores pré-socráticos, estavam buscando princípios básicos e unificadores de organização do Universo – “Arché” em Peters (1967)é a busca de uma substância básica de que são feitas todas as coisas – “Kósmos” em Peters (1967)alude à noção de ordem e beleza de tudo que existe. Estes pensadores viam na “Physis” (Bornheim, 1993) o germinar de todas as coisas, pois esta constitui “a totalidade de tudo que é” (p. 14). Em Thales de Mileto [19] temos a água como Arché, já em Heráclito [20] o fogo, e foi com Empédocles [21] que se encontrou uma harmonia entre os quatro elementos, atraídos pelo amor e separados pelo ódio. Estes protofilósofos [22] ainda viviam em um mundo único e foi somente com a filosofia de Platão que se construiu um modo de pensar, no qual há a possibilidade de mundos separados – o mundo da Physis e o da Metafísica [23], onde o primeiro refere-se ao ‘mundo das coisas’ e outro se refere ao ‘mundo das idéias’. A esta separação de mundos seguiu-se a separação de corpo e alma e o desprestigio crescente do corpo, encontrando seu paroxismo em Descartes, onde o desprezo pelas sensações se justifica como método de acesso ao verdadeiro saber. Alguns filósofos e pensadores têm sido responsáveis por restituir ao mundo, à vida, ao corpo e à vivência sua dimensão fundadora de todo conhecimento. Tais como: Nietzsche, em Deleuze (s.d.), discorre sobre a pluralidade de forças que envolvem um corpo e critica os filósofos que se detiveram tanto no estudo da consciência e não sabem o que pode o corpo; Merleau-Ponty (2000) “Eu organizo com meu corpo uma percepção do mundo (...) habito meu corpo e por ele habito as coisas” (p. 122), continuo com Góis (1995) “..naquele instante o que se vive é tudo, não havendo nada mais”. (p. 69) Considero que o surgimento do conceito de vivência na filosofia significa uma recuperação da sabedoria dos antigos pensadores. O conceito de vivência foi elaborado por Dilthey (1949) como :

...um modo característico distinto em que a realidade está aí para mim. A vivência não se me apresenta como algo representado ; não é dada, a realidade vivência está aí para nós porque nos percebemos por dentro dela, por que a tenho de modo imediato como pertencente a mim em algum sentido.  (p. 362)

 

E desenvolvida por Toro (2000):

 

Vivência é uma experiência vivida com grande intensidade por um indivíduo em um lapso de tempo aqui-agora (gênese atual), abarcando as funções emocionais, cenestésicas e orgânicas. As vivências geram a sensação global de "sentir-se vivo", evocam a intensa percepção de ser quem se é. Como a experiência vivida com grande intensidade por um indivíduo no momento presente, que envolve a cenestesia, as funções viscerais e emocionais. (p. 3)

 

 

            A vivência é forma privilegiada de ativação dos potenciais genéticos [24] responsáveis pela expressão da identidade [25] e ocupa lugar central na abordagem do método Biodanza.

 

O PODER DO GRUPO
 

“A filosofia ocidental tem sido

muito constantemente uma ontologia:

uma redução do Outro ao Mesmo, por mediação

de um termo médio e neutro que assegura

a inteligência do ser.”

Emmanuel Lévinas

“No começo é a relação”

Martin Buber

 

            O poeta Hesíodo em sua Teogonia [26] descreve os quatro seres divinos primários surgidos na origem do Universo. Eros, símbolo da vida e da ligação entre os seres, estava presente entre eles. Destaco este fato para considerar a importância da união e do vínculo e desenvolverei a idéia de que a vida não teria sido possível sem solidariedade, como destaca Margulis (2001) em sua visão de um planeta simbiótico no qual acoplamentos e interdependência foram um importante motor para a evolução. Em nossa espécie encontramos pautas de comportamento instintivo tanto para o amor como para o ódio como descreveu Eibl-Eibesfeldt (1998).

            Reunir-se em grupo com o objetivo de crescimento é por extensão uma confirmação desta tendência gregária [27] em que, através da união e do compartilhamento, da atração e repulsão, possibilita a cada participante enriquecer-se com a diversidade de estímulos afetivos próprios dessas dinâmicas. A crença em um crescimento solitário tem sido criticada por autores como Hillman (1992) que assinalam a tendência do ‘projeto terapêutico’ focar-se no indivíduo e alienar-se dos problemas coletivos, isso reforça o individualismo e o isolamento. Toro (1991), tem denunciado esta tendência solipsista [28] das terapias que, influenciadas pelo individualismo anglo-saxão, se afastam de soluções comunitárias transformadoras do meio social. O grupo é mais eficaz para o indivíduo e também para a sociedade, pois este, é uma amostra micro-social e, a partir dele, cada participante retorna de forma transformadora ao meio em que vive.

            Autores como Pagès (1982) destacam que no grupo vive-se toda a dinâmica de sentimento de ligação e amor autêntico como, também, a angustia da separação. Bion (1970), dedicou-se a estudar o processo dos grupos que evoluem em diversas suposições básicas, como a necessidade de dependência de um líder e de ter esperanças messiânicas, como, também, alcançar constituir-se um grupo cooperativo e maduro.

            Em Biodanza, segundo Toro (2000):
 

O grupo de Biodanza é um bio-gerador, um centro gerador de vida. A concentração de energia convergente dentro de um grupo produz um potencial maior que a soma de suas partes. Esta energia biológica renovadora compromete a unidade e a harmonia do organismo. É criado, assim, um campo magnético no qual se refletem e se projetam emoções, desejos, sensações físicas de grande intensidade. Produz-se uma percepção mais essencial de outras pessoas, um modo de identificação novo. (p. 03)

 

            A afetividade ocupa lugar central na dinâmica do grupo de Biodanza, na forma de empatia, solidariedade e de um continente estruturado [29], fundamental para que o indivíduo se sinta protegido e respeitado em suas necessidades.

 

O PODER DA CARÍCIA
                                                          

                                                           “A tua presença entra pelos sete buracos

            da minha cabeça

            A tua presença

            Pelos olhos, boca, narinas e orelhas

            A tua presença

            Envolve meu tronco, meus braços e minhas pernas

                                                           A tua presença.”

                                   Caetano Veloso

           

            As psicoterapias tiveram sua trajetória marcada pelo confronto com o meio social, como destaca Hillman (1992): “A revolução de Freud foi uma tentativa de lidar com o puritanismo europeu do século XIX. Depois Jung e Reich fizeram a mesma coisa”.(p. 204) Apesar dos ataques sofridos por eles, suas teorias foram absorvidas em campos variados da expressão cultural, desde o cinema até o marketing. Na área da psicologia resultaram em inúmeras ramificações de práticas analíticas [30] e neo-reichianas [31]. O meio acadêmico continua refratário às abordagens chamadas ‘corporais’ e os códigos de psicologia mantêm-se em alerta quanto às abordagens de contato em psicoterapia. Práticas sempre vistas como perigosas e ameaçadoras ao limite ético da ação psicológica.

            Dentre as distintas formas de vínculo entre terapeuta e cliente, observo variantes como o distanciamento na Psicanálise Ortodoxa, passando por abordagens ‘pessoa a pessoa’ como na psicoterapia de orientação rogeriana e chegando em terapias de contato como na , Rolfing [32], Biossíntese [33], dentre outras. O efeito terapêutico do contato tem sido evidenciado em pesquisas como as de Harlow (apud Mussen et al, 1977) onde foram feitos experimentos com macacos que, embora aceitassem serem alimentados por uma mãe mecânica feita de arame, no momento de medo e necessidade buscavam a proteção e a nutrição propiciadas pelo contato com a mãe mecânica feita de tecido similar a pêlos. Além de Harlow, Montagu (1988) destaca a necessidade de que, nos primeiros meses imediatamente após o nascimento, estabeleça-se contato íntimo corporal entre a mãe e o bebê, para que sejam satisfeitas as exigências dos sentidos cinestésico [34] e muscular. Ademais, afirma ainda que, para desenvolver-se bem em todos os níveis, o bebê deve ser acariciado e aninhado nos braços e deve-se falar com ele carinhosamente. O ser humano pode sobreviver a outras privações sensoriais extremas, como a visual e a sonora, mas não à privação sensorial da pele.

            Compartilha do mesmo pensamento Spitz (apud Toro, 2002), que observou que crianças privadas do amor materno, do estímulo afetivo derivado do contato nos seus primeiros meses de vida, sofrem danos irreversíveis nos níveis motores, afetivos e intelectuais e no desenvolvimento da linguagem . Tudo isso é corroborado por Eibl-Eibesfeld (1998), cuja extensa pesquisa etológica revela padrões de comunicação através do contato, presentes na natureza em diversas espécies e, também nos agrupamentos humanos, fundamentais para gerar vínculos de cooperação e solidariedade.

            Em Biodanza, avançamos do contato [35] em direção à carícia [36] – que envolve diversos níveis de sensibilidade, de compromisso corporal, de qualidade da presença. As carícias têm como efeito apaziguar as angústias, recuperar a auto-estima e dissolver tensões crônicas. Esta passagem é feita progressivamente, dada a quantidade de crenças negativas que se têm em relação ao contato e, além disso, a nossa cultura não logrou perceber e fomentar o contato como essencial para a saúde. Compartilho da visão de Marcuse (s.d.), onde Eros e Civilização [37]podem conviver de forma integrada, eliminando a excessiva carga da ‘mais-repressão’, que são restrições requeridas pela dominação social com o objetivo de através do empobrecimento da libido, poder direcionar a débil energia restante para um trabalho mecanizado e alienado. Segundo este padrão de organização social, sem um controle repressivo intenso, o homem retornaria à barbárie e à desordem cultural, “a civilização explodiria e reverteria à barbárie pré-histórica”, (Marcuse, s.d., p.142). Estas crenças têm sido usadas para justificar a impossibilidade de uma sociedade mais amorosa e humanitária. A ‘mais-repressão’ distingue-se da repressão ‘básica’, que faz parte da regulação dos instintos necessários à perpetuação da vida e para a ordem cultural. Esta não impede que se manifeste a afetividade em atos concretos de contato, apenas as regula e adequa ao lugar e em feedback com o meio circundante.

 

O PODER DO TRANSE E DA REGRESSÃO

 

O estilo de vida contemporâneo tem predomínio ergotrópico, caracterizado por hiper-estimulação perceptiva, excesso de atividades, poucas horas de sono e constante estado de alerta. Para compensar este desequilíbrio é necessário ativar os mecanismos de reparação orgânica, renovação celular e descanso, denominado por Toro (2000) de estados regressivos:

O estado de regressão é um retorno psico-fisiológico à etapa fetal ou perinatal, isto é, imediatamente anteriores ou posteriores ao nascimento. Durante o estado de regressão o indivíduo reedita condições psíquicas e biológicas da infância. A regressão pode ter um caráter renovador integrativo, de reparação e compensação psico-biológica. A regressão integrativa tem um efeito saudável. Seu efeito anti-stress é aceito cientificamente. (p.03)

 

Para se atingir tais efeitos, torna-se necessário fazer um trânsito do estado da consciência, como na explicação do autor:

Transe e regressão são fenômenos que freqüentemente se produzem de forma simultânea. A palavra transe provém, etimologicamente do término "transir", transitar, transportar-se, passar de um estado a outro. Seu significado usual é "mudança de estado de consciência". As experiências de “cair em transe”, “entrar em transe”, se referem a um mecanismo psico-fisiológico no qual a pessoa se abandona a certas condições externas ou internas para ingressar em um estado de consciência diferente. Os estados de transe são acompanhados sempre por modificações cenestésicas [38] e neurovegetativas. (p. 03)

 

O efeito harmonizador orgânico derivado dos estados de transe e de regressão possibilita aos participantes de Biodanza a adoção de um estilo de vida mais equilibrado e profunda vivência de renovação.

 

O PODER DA EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA

 

                                                           “Se as portas da percepção se purificassem

                                                           cada coisa apareceria ao homem tal como é,

                                                           infinita.”
Willian Blake
 

            Vamos abordar agora um dos efeitos mais profundos da Biodanza, com grande capacidade de gerar transformação no cotidiano dos indivíduos que a alcançam mediante estados especiais. Seguirei a indicação de Damásio (2000) quando afirma que: “O alicerce indispensável da consciência é a consciência central, mas sua glória é a consciência ampliada.” (p.251) A consciência de estar vivo foi uma aquisição fundamental para a nossa espécie pois nos possibilitou criar o mundo da cultura, mas a consciência ampliada nos permite ir além, como define Toro (2000) :

O sentimento de íntima vinculação com a natureza e com o próximo é uma experiência culminante que se tem rara vez na vida. Experimentá-la uma só vez permite iniciar uma mudança na atitude frente a si mesmo e frente aos demais. O saber com “certeza” que não somos seres isolados, mas que participamos do movimento unificante do cosmos, basta para deslocar nossa escala de valores. Mas este saber com certeza não é um saber intelectual; é um saber mais comovedor e transcendente.          

A possibilidade de alcançar um estado de consciência superior, em que cada um possa liberar-se dos hábitos mentais e emocionais que o torna “desligado”, é escassa para os homens desta civilização, acossados, aplainados pela estandardização, enfermos pela tensão que devem suportar, tiranizados pelo mecanicismo.

Sua importância sobrepassa o âmbito da clínica e da investigação psiquiátrica para abarcar o da antropologia, da pedagogia, da arte e de outros setores da cultura. (p. 07)

 

             Em Neumann (1968), há a narrativa da evolução criativa da consciência humana e sua autolibertação do inconsciente. Este autor nos revela que a evolução da consciência se deu por estágios, ao mesmo tempo, coletivos e individuais, assim sendo, o desenvolvimento ontogenético [39] é uma recapitulação modificada do desenvolvimento filogenético [40]. Saber que existimos num universo vivo e em perene criação nos projeta em uma dimensão de expansão de consciência, de religare [41]. Nestes estados especiais reencontramos nosso antigo caminho de acesso ao sagrado, como diz Eliade (1957): “O cosmos dessacralizado é um acontecimento recente na história do espírito humano.” (p. 19)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS
 

            Ao longo desse artigo discorri sobre os sete poderes de transformação de Biodanza com o objetivo de abrir caminhos para responder à pergunta inicial sobre porque a Biodanza funciona e atua de forma integral nos seus praticantes. Os níveis orgânicos, afetivos, cognitivos e existenciais são ativados de forma integradora porque são utilizados recursos teóricos e metodológicos contemporâneos de alta eficácia. Também espero contribuir para que se tenha maior clareza a respeito do alcance desse método. Tanto para os alunos conhecerem mais sobre o efeito dessa prática, como para estimular os facilitadores a buscar maior domínio desses recursos. Isto irá possibilitar ampliar o espaço de atuação, utilizando melhor a riqueza de recursos acumulados ao longo de mais de quarenta anos de pesquisa feita por seu autor, Rolando Toro e colaboradores.

 

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